sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Conto: Á procura de uma dignidade.




"(...)Parecia mais uma lengalenga árabe. Há trinta anos não chorava, mas agora estava tão cansada. Se é que aquilo era choro. Não era. Era alguma coisa. Finalmente, assoou o nariz. Então pensou o seguinte: que ela forçaria o “destino” e teria um destino maior. Com força de vontade se consegue tudo, pensou sem a menor convicção. E isso de estar presa a um destino ocorrera-lhe porque já começara sem querer a pensar em “aquilo”.

Aconteceu então que a senhora também pensou o seguinte: era tarde demais para ter um destino. Pensou que bem faria qualquer tipo de permuta com outro ser. Mas lhe ocorreu que não havia com quem se permutar: quem quer que fosse, ela era ela e não podia se transformar em outra única. Cada um era único. A Srª Jorge B. Xavier também era.

Mas tudo o que lhe acontecera ainda era preferível a sentir “aquilo”. E eis que de repente “aquilo” veio com seus longos corredores sem saída. E sem o menor pudor, “aquilo” era a fome dolorosa de suas entranhas, fome de ser possuída pelo inalcançável ídolo de televisão. Não perdia um só programa dele. Então, já que não pudera se impedir de pensar nele, o jeito era deixar-se pensar e relembrar o rosto de menina-moça do cantor Roberto Carlos, meu amor.

Foi lavar as mãos sujas de poeira e viu-se no espelho da pia. Então a Srª Xavier pensou assim: “Se eu quiser muito, mas muito mesmo, ele será meu por ao menos uma noite”. Acreditava vagamente na força de vontade. De novo se emaranhou no desejo, que era retorcido e estrangulado.

Mas, quem sabe?, se desistisse de Roberto Carlos, então é que as coisas entre ele e ela aconteceriam. A Srª Xavier meditou um pouco sobre o assunto. Porque sempre quando ela desistia de algo, acontecia. Então espertamente fingiu que desistia de Roberto Carlos. Mas bem sabia que a desistência mágica só dava resultados positivos quando era real, e não apenas um truque como modo de conseguir. A realidade exigira muito da senhora. Examinou-se ao espelho para ver se o rosto se tornara bestial sob a influência de seus sentimentos. Mas era um rosto quieto que já deixara há muito de representar o que sentia. Aliás, seu rosto nunca exprimira senão boa educação. E agora era apenas a máscara duma mulher de setenta anos. Sua cara levemente maquilhada pareceu-lhe e dum palhaço. A senhora forçou sem vontade um sorriso para ver se melhorava. Não melhorou.

Por fora – viu no espelho – ela era uma coisa seca como um figo seco. Mas por dentro não era estorricada. Pelo contrário. Parecia por dentro uma gengiva úmida, mole assim como gengiva desdentada.

Então procurou um pensamento que a espiritualizasse ou que a estorricasse de vez. Mas nunca fora espiritual. E por causa de Roberto Carlos a senhora estava envolta nas trevas da matéria, onde ela era profundamente anônima.

De pé no banheiro era tão anônima quanto uma galinha.

Numa fração de fugitivo segundo quase inconsciente, vislumbrou quase todas as pessoas anônimas. Porque ninguém é o outro e outro não conhecia o outro. Então – então a pessoa é anônima. E agora estava emaranhada naquele poço fundo e mortal, na revolução do corpo. Corpo cujo fundo não se via e que era a escuridão das trevas malignas de seus instintos vivos como lagartos e ratos. E tudo fora de época, fruto fora de estação? Por que nunca lhe tinham avisado as outras velhas que até o fim isso podia acontecer? Nos homens velhos bem vira olhares lúbricos. Mas nas velhas não. Fora de estação. E ela viva como se ainda fosse alguém, ela que não era ninguém.

A Srª Jorge B. Xavier era ninguém.

Então quis ter sentimentos bonitos e românticos em relação à delicadeza de rosto de Roberto Carlos. Mas não conseguiu: a delicadeza dele apenas a levava a um corredor escuro de sensualidade. E a danação era a lascívia. Era fome baixa: ela queria comer a boca de Roberto Carlos. Não era romântica, ela era grosseira em matéria de amor. Ali no banheiro, defronte do espelho da pia.

Com sua idade indelevelmente maculada. Sem ao menos um pensamento sublime que lhe servisse de leme e que enobrecesse a sua existência.

Começou a desmanchar o coque dos cabelos e a penteá-los devagar. Estavam precisando de nova pintura, as raízes brancas já apareciam. A senhora pensou o seguinte: na minha vida nunca houve um clímax como nas histórias que se lêem. O clímax era Roberto Carlos. Meditativa, concluiu que iria morrer secretamente assim como secretamente vivera. Mas também sabia que toda morte é secreta.

No fundo de sua futura morte imaginou ver no espelho a figura cobiçada de Roberto Carlos, com aqueles macios cabelos encaracolados que ele tinha. Ali estava, presa ao desejo fora de estação assim como o dia de verão em pleno inverno. Presa no emaranhado dos corredores do Maracanã. Presa ao segredo mortal das velhas. Só que ela não estava habituada a ter quase setenta anos, faltava-lhe prática e não tinha a menor experiência.

Então disse algo e bem sozinha:

– Robertinho Carlinhos.

E acrescentou ainda: meu amor. Ouviu sua voz com estranheza, como se estivesse pela primeira vez fazendo, sem nenhum pudor ou sentimento de culpa, a confissão que no entanto deveria ser vergonhosa. A senhora devaneou que era capaz de Robertinho não querer aceitar o seu amor porque tinha ela própria a consciência de que este amor era muito piegas, melosamente voluptuoso e guloso. E Roberto Carlos parecia tão casto, tão assexuado.

Seus lábios levemente pintados ainda seriam beijáveis? Ou por acaso era nojento beijar boca de velha? Examinou bem de perto e inexpressivamente os próprios lábios. E ainda inexpressivamente cantou o estribilho da canção mais famosa de Roberto Carlos: “Quero eu você me aqueça neste inverno e que tudo o mais vá para o inferno”.

Foi então que a Srª Jorge B. Xavier bruscamente dobrou-se sobre a pia como se fosse vomitar as vísceras e interrompeu sua vida com uma mudez estraçalhante: tem! que! haver! uma! porta! de saííííííída!"

Bom, amo este conto. Não dá pra postar inteiro, porque é realmente grande, mas se quiser dar uma olhada na íntegra, clique aqui. Como é véspera de carnaval, não me vem nada melhor para postar na cabeça e até tenho novidades, mas acho que não seria conveniente posta-las sem inspiração. Até depois dessas "mini-férias" de quatro dias.

17 comentários:

  1. Srt. incrível como a Cla (íntima!) tem uma característica de escrita dela própria... nunca li esse conto, mas qndo comecei a ler me veio ela na cabeça! Quando vc escreveu que amava pensei ... é da Cla.! Aí tive que clicar para ver a íntegra! ahuahauauhau
    Bom Carnaval pra você!! Aproveite essa mini-férias!!rsrs!

    Bjão
    JuJu

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  2. Nossa, adoro a escrita da autora. Tem um toque profundo e cotidiano que realça as histórias.
    Beijos e boas pequenas férias.

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  3. Realmente ele é um pouco grandinho! Mas vou conferir o resto no link que você deixou. Adorei...ótima dica!^^
    Beijos!
    Paloma Viricio- Jornalismo na Alma

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  4. Lindo demais esse conto, daqui a pouco já vou ve a continuação ♥
    awm menina adoro demais esse jogo kkkkk se bobiar fico o dia
    conversando-com-a-lua.blogspot.com.br

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  5. Adorei esse conto, agora estou morrendo de ver o final, vou lá conferir
    beijos

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  6. Adorei o conto, e o final? rsrs
    Vou correndo ver a continuação. rs
    clicandolivros

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  7. Esse conto é maravilhoso. Já tinha lido ele.. É um dos meus preferidos da Clarice, junto com "Felicidade Clandestina". ♥
    Quer melhor inspiração pra quê?
    Vir aqui e ler Clarice!

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  8. Que texto lindo, você escreve muito bem! Adorei seu blog, realmente muito incrível, tem tudo para fazer o maior sucesso; Já estou seguindo, segue o meu também?
    www.espacegirl.blogspot.com

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  9. Não sou muito chegada a contos, mas gostei desse. Pena que acabam rápido demais... ai ai, muito inspirador, rsrs.

    Um abraço!
    http://universoliterario.blogspot.com/

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  10. Ah! Grandinho, mas lindo!
    Vou conferir ele inteiro! :D

    Um beijo,

    http://algumasobservacoes.blogspot.com/
    http://escritoshumanos.blogspot.com/

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  11. Nunca tinha lido este conto especificamente, mas assim que comecei a ler, o rítmo da escrita, as escolhas de palavras... a Clarice foi a pessoa que me veio a cabeça! :D

    Passando para desejar um ótimo dia!
    Liz<3
    The Red Lil' Shoes Blog
    http://theredlilshoes.blogspot.com.br/

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  12. Como não tinha nenhum aviso de início que era um conto da Clarice, comecei achando que era um conto seu. Mas, à medida que ia lendo, ia desconfiando de que na verdade eu estava lendo palavras da Clarice. Então dei uma googlada e realmente vi que era um conto da Clarice. E, quando cheguei ao fim do post, havia um link que redirecionava pra o conto inteiro.
    Clarice é uma linda e fala de coisas da alma com maestria. Sou fã.

    ;)

    Sacudindo Palavras

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  13. Gostei do texto, profundo demais. Confesso que achei tão complexo que leria tudo para entender melhor a história.

    Baci!

    C.F.H.

    Curta aqui!

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  14. Adorei esse conto. Ótima escolha! ;)

    Beijokas linda!
    Blog da Mylloka

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  15. Caraca, que conto lindo!
    Viajei legal nele, quero ler o final!

    Beijos

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  16. Sou apaixonada pela escrita da Clarice, grande parte se deve ao meu pai que meio que me obrigava a ler as obras dela para melhor meu português. Mas hoje agradeço a ele por ter conhecido a Clarice e tantos outros autores... Sou um pouco boba e por isso já chorei muito lendo coisas delas... rsrs

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  17. De vez em quando eu tento esse lance de "fingir desistir" pra ver se a coisa acontecesse, mas assim como vc escreveu, isso tem q ser espontâneo, a gente tem q realmente virar a página q aí as coisas acontecem. Acredito nisso.
    Beijos!

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Não gaste teclado: SE NÃO LEU, NÃO COMENTE. Também não tente me enganar: Eu percebo quando a pessoa não leu nada. (Aliás, tem gente que não lê nem isso aqui).